sábado, 22 de maio de 2021

A VIAGEM INCONCLUSA, REMEMORADA 30 ANOS DEPOIS

 

  • Na estrada, a morte súbita do prefeito Jorge Moisés ao anoitecer.
  • As consequências políticas do fato histórico vitoriense.

Por Washington Luiz Maciel Cantanhêde

Terminava a manhã de um dia nublado, entre o fim de abril e o início de maio. Eu ainda não completara 28 anos de idade e era o presidente da Câmara Municipal de Vitória do Mearim, nos primeiros meses da gestão. Estava com os vereadores Francisco Eduardo Costa e Francisco Xavier Santos, amigos, em um restaurante da entrada da cidade.
Apareceu-nos, de repente, o prefeito municipal e adversário Jorge Moisés da Silva, contra quem vínhamos de travar embates contínuos e, mês após mês, desde janeiro, ultimamente com vitória no plano judicial, lutávamos para obter o repasse dos recursos necessários ao funcionamento do poder legislativo local. Com seu jeito irreverente de ser, alheio a regras de conveniência ou etiqueta social, sentou-se à mesa, expansivo, tal como faria um aliado político (que ele não era), pegou um pedaço de frango assado da travessa e começou a comê-lo enquanto nos fitava, sorridente. Como se fôssemos amigos muito próximos, puxou uma conversa aparentemente despretensiosa em meio ao constrangimento geral.
Em determinado momento, pôs a mão sobre meu ombro e, em meio ao riso irônico que lhe era próprio, me disse, em voz alta, com seu linguajar característico:
- Olha, Vitória do Mearim é nossa! Quem deve dirigir seus destinos somos nós mesmos, e não gente de fora. Nós nos entendemos. Se brigarmos de manhã, à tarde estaremos passeando na praça, um com o braço no ombro do outro. Com estranhos nunca será dessa forma. E o pior será a dificuldade, depois, para tomar o controle das mãos deles.
Logo se levantou e, desconfiados, o seguimos com o olhar até o carro, estacionado entre o posto de combustível e o restaurante.
Dera aquele recado como se cumprisse uma missão e partiu em alta velocidade, como quase sempre.
O recado tinha causa conhecida: sabia ele que, pelo menos dois de nós, vereadores ali presentes, estávamos praticamente fechados com a candidatura a prefeito, em 1992, de Reginaldo Rios Pearce, um estranho no ninho da política local e seu desafeto, embora já tivessem sido amigos de carteado e negócios. O ex-engenheiro da empresa Estral, radicado em Vitória após terminar o trabalho que viera fazer na região, obra da ferrovia de Carajás, da Companhia Vale do Rio Doce (hoje, Vale, apenas), vinha ganhando projeção desde 1988. A minha própria eleição para a presidência da Câmara, uma proeza do grupo parlamentar de oposição, minoritário, passara por uma costura com participação do engenheiro.
Tínhamos Jorge Moisés como um adversário difícil de vencer. Comerciante e fazendeiro de gado vacum, em que se destacava o seu rebanho de búfalos, apaixonado por veículos automotores, que trocava velozmente (longe, contudo, da velocidade que empreendia ao volante), o filho de imigrantes árabes católicos, amoroso para com os seus familiares, era um político que prometia grande longevidade na vida pública local.
Ele era vereador no final dos anos 1960 quando rompera com o grupo do jovem prefeito José de Ribamar de Matos, herdeiro político do padre Eliud Nunes Arouche, formando, como candidato a vice-prefeito, a chapa encabeçada pelo também vereador Lourival José Coelho, que disputou a prefeitura municipal, para o mandato de janeiro de 1970 a janeiro de 1973, com os situacionistas Cristovam Dutra Martins e José Maria Rodrigues, candidatos a prefeito e vice-prefeito, respectivamente. Derrotado, voltou ao protagonismo da cena política em 1972, agora como candidato a prefeito, tendo como candidato a vice o pastor local da Igreja Assembleia de Deus, João Evangelista Rodrigues. Novamente derrotado, agora por Maria do Socorro Sampaio de Matos (leia-se: Ribamar Matos, marido desta, que, vítima de estratagema dos adversários, ficou impedido de concorrer naquele pleito), tendo esta como vice José da Silva Gomes, em pleito bastante disputado no voto e na Justiça, e de resultado muito contestado (perdeu, oficialmente, por três votos), Jorge ressurgiu em 1976, mais uma vez como candidato a prefeito, trazendo Fernando Melo, do povoado Igarapé do Meio (hoje, sede do município de mesmo nome), como candidato a vice.
Um tanto pelo desgaste do grupo no poder desde o início da década anterior, outro tanto pela aura de vítima eleitoral que o circundava, mas principalmente por um carisma muito próprio – que conjugava efusivas demonstrações de afeto para com aliados e cativantes mostras de identificação com os mais humildes, assim como ruidosas e chocantes manifestações de desapreço para com os adversários e hilárias condutas em público –, Jorge Moisés venceu, em campanha renhida, os candidatos situacionistas José Maria Rodrigues (prefeito) e Juarez de Jesus dos Prazeres (vice) com maioria de 818 votos, número significativo para a época e que, para desforra das derrotas anteriores, fazendo-o lembrado pelos adversários por todo o tempo do mandato, quiçá também em resposta ao episódio sangrento que marcou a comemoração da sua vitória, foi, estilizado, convertido em logomarca do seu governo.
Seis anos de mandato (janeiro de 1977 a janeiro de 1983) foram suficientes para consolidar Jorge Moisés como um dos grandes líderes da política vitoriense. Daquela época, a título de realizações bem visíveis do seu governo, remanesce o hospital municipal que ele fez construir e funcionar, a que deu o nome brasileiro do seu pai, Kalil Moisés da Silva, o mesmo padeiro Kalil Moses Abi Salles (ou, primitivamente, Abu Sale, Abu Sales, Abu Salem ou Ab-Salem), que chegara ao Maranhão, procedente do Líbano, por volta de 1920, radicando-se na vila da Victória do Baixo Mearim.
Jorge entregou o cargo de prefeito municipal ao seu aliado Lourival José Coelho, eleito em 1982 com Marenilde Alves de Sousa Melo (vice, esposa do vice anterior, Fernando Melo), que venceram a chapa encabeçada pelo ex-prefeito Ribamar Matos, na qual o vice era Urany Gusmão da Costa (também ex-prefeito, do período 1961-1966). Lourival Coelho sagrou-se vitorioso pela conjunção de três forças políticas: seu próprio prestígio eleitoral, demonstrado em sucessivas eleições para a Câmara Municipal, desde 1966; a força da candidatura ao governo do Estado do marido de sua sobrinha e seu aliado, deputado federal Luiz Alves Coelho Rocha, do PDS (ex-ARENA), partido da ditadura; e o prestígio do seu antecessor, compadre e amigo, Jorge Moisés. A despeito disso, afastaram-se durante o mandato que se seguiu. Jorge, entretanto, cuidou de manter-se ativo na política, apoiando candidatos no pleito geral de 1986 e se aproximando do antigo adversário Ribamar Matos e seu grupo.
Em 1988, mortos no exercício do cargo de prefeito, sucessivamente, o titular Lourival Coelho (de morte natural, em 1986) e a vice Marenilde Melo (de acidente automobilístico, em 1988 mesmo), para surpresa de muitos, Jorge Moisés apareceu como cabeça da chapa que tinha Ribamar Matos na posição de vice, concorrendo à prefeitura municipal. Venceram aquela disputa com folga (mas não sem contestações da voz popular), deixando em segundo lugar Benedito Benê Prazeres Lemos, nova força política, surgida em 1982 e que se consolidava naquele momento, também apoiado por sindicalistas e lideranças populares, segmento que lhe deu o candidato a vice; e em terceiro, o vereador José Benedito Cruz, representando o que restava do grupo dos ex-prefeitos falecidos no exercício do cargo, àquela altura comandado pelo prefeito Manoel Antônio Maciel (Nezinho), presidente da Câmara a quem tocara, no final da linha sucessória, assumir, em julho de 1988, a chefia do poder executivo municipal. Era a consagração do fenômeno eleitoral chamado Jorge Moisés da Silva.
O prefeito que combatíamos em 1991, e o fazíamos desde o início do mandato, em janeiro de 1989, nós, os vereadores recém-surpreendidos naquele fim da manhã de um dia entre abril e maio, era uma fênix da política local – um Jorge Moisés da Silva, portanto, renascido das cinzas várias vezes, razão pela qual o imaginávamos assaz longevo na atividade. Vendo-o sempre, e cada vez mais, exitoso no exercício do papel de Jorge Moisés, queríamos e esperávamos vencer o seu candidato a prefeito em 1992, mas sabíamos ser difícil. Ele já fizera sucessor antes, depois de governar seis anos, e poderia repetir o feito.
Poucos dias depois daquele inusitado encontro no restaurante da entrada da cidade, todavia, a notícia, inacreditável, chegou pelo telefone como se fosse uma bomba. Era 21 de maio de 1991, uma terça-feira. Anoitecia. Nas imediações do ainda povoado Olinda dos Castro (hoje, cidade de Olinda Nova do Maranhão), um veículo automotor do modelo pampa, de cor branca, atropelou um búfalo que cruzava a rodovia, capotando por duas vezes na sequência, antes de cair no abismo lateral à estrada. O acidente interrompeu a viagem e ceifou a vida do condutor do utilitário e seu único ocupante: Jorge Moisés da Silva, prefeito municipal de Vitória do Mearim...
O Município parou. Todos pararam, incrédulos, até o final da tarde de 22 de maio, quando, coberto pela bandeira oficial do Município que acabara de ser restaurada pela Câmara Municipal, o féretro com o corpo do pranteado Jorge Moisés, depois de percorrer em grande cortejo as ruas da cidade, desde a casa residencial do Prefeito, na Praça da Criança, até o Cemitério do Alto São Francisco, desceu à sepultura.
O trauma ganhava maior dimensão porque, em um período de cinco anos, aquele era o terceiro prefeito vitoriense que falecia no exercício do cargo, dois dos quais de acidente automobilístico. Além disso, o prefeito Nezinho Maciel escapara, no segundo semestre de 1988, de um acidente de lancha dentro do Município.
Mas a realidade se impunha: a municipalidade estava, oficialmente, há 24 horas sem prefeito e era preciso dar posse no cargo, imediatamente, ao vice-prefeito José de Ribamar de Matos. Como desde o início da manhã fora acertado, coube-me fazê-lo, como presidente da Câmara Municipal. Convocados, os vereadores compareceram à sala das sessões ainda no final daquela tarde e declaramos Dr. Ribamar, tal como regressava do cemitério, empossado no cargo, depois de tomar-lhe o compromisso de bem servir (mais uma vez) ao povo da sua terra.
Jorge e Ribamar, aliados que se tornaram adversários que se reencontraram como aliados, foram, como não poderiam deixar de ser, produtos do seu tempo e da ambiência social em que surgiram como políticos. Vitória do Mearim, antes deles, havia conhecido o coronelismo clássico da política, com toda a sua crueza. O tempo deles conservava muitos traços marcantes do mandonismo na política e foi precedente ao pleno estado democrático de direito. É nesse contexto que eles devem ser retratados pela História. Tão diferentes na maneira de ser, de pensar e agir, foram duas lideranças carismáticas como jamais surgiu outra nos últimos 30 anos. Jorge desapareceu em 1991 e Ribamar, em 1995, de morte natural, depois de amargar o dissabor de uma gestão (1991-1992) que não foi efetivamente sua, pois eminências pardas conseguiram deixá-la nada plausível.
O que se seguiu não cabe nestas notas. É matéria para muita discussão.
Importa dizer, entretanto, que há 30 anos, neste dia, Vitória do Mearim caminhava, sem querer, para cair em um vazio de liderança política no ano seguinte, haja vista a mudança radical de cenário provocada pela morte de Jorge Moisés. E esse fato foi determinante para o que vimos na sequência: Reginaldo Rios Pearce habilitou-se como candidato viável e foi eleito prefeito em 1992 (com meu apoio, inclusive), deixando Benê, por pequena margem de votos, em segundo lugar; e em terceiro, por larga diferença, Antonio Moyses da Silva Netto, de saudosa memória, como candidato situacionista.
Depois de recusar o trabalho no histórico prédio da Prefeitura Municipal, inaugurado em 1943, sede do governo, também, dos prefeitos mortos nos últimos anos, Reginaldo deu o tom da política local até a última eleição, ano passado, vencendo várias vezes e sendo vencido, mas sem perder o fôlego, apenas duas, em 2004 e 2016, pois não esqueçamos que o atual alcaide de Vitória, eleito em 2020, embora sem ter então recebido o apoio daquele, abraçou a política, quatro anos antes, sob incentivo do grande fazendeiro, em que se tornou o engenheiro, que faleceu há poucos meses.
Quanto a mim, não obtive a reeleição em 1992, pois ainda não perdera a majestade aquela que reinava, desde os anos 1950, pela maestria na fraude, conhecida nacionalmente como a zona eleitoral “Quarenta e Uma”: simplesmente, não foram enviadas as cédulas de votação para o local de onde viria o quantitativo de votos suficiente para garantir a minha vitória. Promotor de Justiça desde 1993, mas sempre vinculado à minha terra, não me canso, entretanto, até hoje, de lembrar certas palavras que ouvi, com vereadores amigos, em uma manhã vitoriense de trinta anos atrás...
(São Luís do Maranhão, 21 de maio de 2021)
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Jorge Moisés na Câmara Municipal de Vitória do Mearim,
aguardando a promulgação da Lei Orgânica do Município,
em que prestaria o compromisso de cumpri-la (01.04.1990).

Ribamar Matos assumindo o cargo de prefeito municipal em sessão da Câmara
presidida pelo vereador Washington Cantanhede (22.05.1991)

Dona Darcy Rocha, Jorginho, Jorge Moisés e
Dona Miriam Bogéa e Silva
(Festa na Escola Ana Bogéa Gonçalves)



Jorge Moisés da Silva *03/06/1934 +21/05/1991








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